Dado que se constitui, em sua imensa maioria, o vulgo de ignaros, e que, em sendo abstrusa a linguagem e barroco o texto, nenhum deles se dará de o ler, e sendo, ainda, melindroso o assunto, dar-me-ei a propalar e dar à luz de modo absconso pareceres que, se os dissesse em estilo ático, angariar-me-iam ódios e diatribes. Se, vede bem, o vernáculo cristalino já é, a quem vive nesta terra, linguajar esotérico, quanto mais aquele que, de adrede, faz voltas e abusa do léxico para ocultar ainda mais a mensagem que promana. Porque esses leitores não são apenas incultos: a ignávia intelectual é também um brasão que carregam com orgulho. Daí que, em começando deste modo o ensaio, à maneira de um erudito que, na sua ignorância, apaixona-se pelo pouco que sabe, e que, por isolar-se acima de todos, prefere o obscuro ao claro, o sofisticado ao simples, o ornamentado ao escorreito, terá o leitor médio tanto horror que não passará da terceira linha, se chegar a transpor o título, que já um vocábulo alienígena contém. Àqueles, porém, que, como um São Jerônimo, forem vertendo os nomes em nomes conhecidos, a esses digo que não leveis isto a sério, pois aqui é autor mais de burla que de sapiência.
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Não é preciso que vá neste linguajar o texto inteiro. Aqueles a quem este ensaio pode ofender não chegarão até aqui, e os dentre eles que chegarem não se hão de ofender. É engraçada a história deste ensaio, e não há outra igual nem semelhante entre os que escrevi. Comecei-o com o linguajar claro que emprego de costume, mas, pensando que seria ultrajoso à classe empreendedora, e estando eu mui frequente nesta classe, tive medo de que meu verdadeiro pensamento fosse descoberto, e minha reputação magoada. Cuidei então encobrir o pensamento com um linguajar abstruso, para que poucos lessem e menos ainda entendessem, pois em terra de analfabeto tudo é Esfinge. E coloquei ainda sobre a Esfinge um manto, por modo a evitar que olhassem para ela. É cansativo porém escrever assim longamente, e quase insuportável lê-lo, e então, recomeçando o ensaio, disse o que queria em linguagem clara, como logo mais vereis. O eruditismo é vício de quem preza mais a pompa no dizer do que o que tem a dizer, e essa mesma preferência demonstrada induz o leitor a estimar em menos as ideias do autor. Semelhante estilo me lembra a dedicatória e a crítica literária que antecede e sucede o Poema da Mocidade, de Manuel Pinheiro Chagas, aquela escrita pelo autor e esta por António Feliciano de Castilho, a quem Antero de Quental certa vez criticou dizendo que seus escritos não continham nenhuma ideia, mas palavras quantas bastassem para um dicionário de sinônimos. Assim escreveu Pinheiro Chagas na dedicatória do Poema da Mocidade:
Julgarão talvez muitos sobeja audácia e demasiada vanglória da minha parte o inscrever o nome egrégio de V. ex. no mesquinho frontão de templo humilde e pobre. Dirão que é de néscio invocar as lembranças do luminoso Olimpo, onde campeiam os numes literários, à porta do tugúrio modesto, em que inexperto pegureiro procura, balbuciando, iniciar-se na formosa arte, que a antiguidade pagã julgou tão nobre e sublime que não achou outro deus, sob cuja proteção a colocasse, que não fosse o Apolo d'áurea coma, o da eterna juventude, o próprio nume, cujo carro ovante, ao deslizar na campina azul, derramava sobre o mundo turbilhões de vida e torrentes de esplendor. Dirão talvez que só compete aos Césares e aos Cipiões erguerem templos à Deusa Vitoriosa, e que igual pretensão seria ridícula nos Póstumos, cujas coortes passaram por baixo do jugo dos Samnitas, e nos Varos a quem Augusto pedia as suas legiões, que haviam ficado estendidas nos plainos da Germânia.[1]
Um tal estilo lembra o pobre que enricou e agora deseja ostentar sua riqueza. O estilo aristocrático se sabe rico de nascença, e por isso preserva a humildade. Os grandes autores são festejados por serem eruditos sem deixar de ser naturais, e profundos sem deixar de ser simples. É o caso de Cervantes, Machado de Assis e Padre Antônio Vieira. Sobre este aliás tenho uma história interessante. Nunca se viu estilo tão belo na língua portuguesa, e um amigo meu, de quem nunca testemunhei uma palavra obscena, vacilou certa vez numa livraria quando falamos do estilo de Padre Vieira: “Vai escrever bem assim na...”, e conteve-se. Foi o mais longe que o vi chegar, não sem bom motivo.
E é quanto basta. Partamos ao ensaio.
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Assim que defini que trabalharia com branding e marketing pessoal, determinei que atenderia a eventos que tratassem de assuntos semelhantes, menos para aprender que para fazer networking. Aos puristas, digo logo que também detesto usar terminhos em inglês, e os não usaria se não fosse ônus da profissão. Soa isto a um tempo esnobe e inculto, e presta honor a uma língua de comerciantes.
A vantagem desse negócio é que tenho de lidar com o tipo menos desprezível do nosso tempo: o empreendedor moderno. Apesar do pragmatismo estúpido, da visão tão superficial que chega a ser plana, do amor ao dinheiro e ao status e da moralidade flexível, ele é ainda, dos tipos arquetípicos, o único que tem buscado evolução pessoal, e por isso enchido os galpões de eventos e investido em cursos e livros. Os outros tipos, a saber, o intelectual, o político e o sacerdote – nem conto o trabalhador – nada têm feito nesse sentido, de modo que, no nosso tempo, é o tipo comerciante que tem buscado a verdadeira evolução, embora a enxergue apenas como meio para uma vida materialmente mais abundante.
E sentem-se eles tão importantes, no seu labor meramente produtivo, que falam em equity e value como se fossem termos alquímicos, como se o empreendedorismo e a riqueza fossem o fim e o máximo da aspiração humana.
Na verdade, no que me diz respeito, além do benefício que julgo me ser proporcionado por quaisquer discursos filosóficos, feitos por mim mesmo ou ouvidos de outros, deles extraio imenso prazer, ao passo que no caso de outros tipos de discursos, especialmente a conversação de ricos homens de negócios envolvidos com dinheiro, indivíduos como tu, sinto-me não só pessoalmente entediado, como também lamento por amigos queridos como tu, que pensam estar fazendo algo muito importante, quando realmente não passa de algo insignificante.[2]
E é natural que pensem assim, isto é, que fazem algo de suma importância, uma vez que não enxergam no mundo nada além disso. Ser-lhes-ia absolutamente incompreensível um indivíduo dedicar-se a coisas tais como arte, letras, Deus, filosofia. Porquanto nada disso é pragmático. Mas o que é o pragmatismo? Ora, é um modo velado de dizer ausência de valores superiores. O que possui o pragmático além do mesmo nome de que se jacta? Respondo: o cobertor da ignorância: “Homens práticos, que se creem isentos de qualquer influência intelectual, são em geral escravos de algum economista morto.” Por onde se vê que o pragmático, no fundo, não é mais que um idiota, e que o verdadeiro pragmatismo é o amor pelo Ideal.
Nesse propósito de atender a eventos sobre branding, marketing, gestão e quejandos, fui dar na palestra de um coach, tão aferrado a vender seu último livro, que se pode dizer que outra coisa não fez em duas horas senão isso. Disse-nos que o escrevera em dois dias, como fosse isso boa propaganda. Por certo, se o escreveu em dois dias, um livro que calculo ter coisa de trezentas páginas, ou é obra de máquina, ou livro de figuras, porque nem batendo teclas a esmo se preenchem trezentas páginas em dois dias. Por aí já se vê de que jaez é o autor. Mas não principiou ele pelo livro, que isto seria má venda. Principiou por sorrisos, histórias e pilhérias, e pela pretensão de informar e educar, mas aplicando desde o início técnicas tais que conduzissem o ouvinte a sacar o cartão assim que fosse dado o sinal. E isto mesmo sucedeu: de tal maneira falou, que convenceu a plateia de que comprar o livro fosse ação de coragem e de proveito, e que quem o não fizesse poderia estar perdendo grande oportunidade – dado ainda que estava oferecendo junto com o livro um presente misterioso a quem o comprasse, o qual ele só revelaria depois do intervalo, quando já inválida a oferta. Não sei que presente teria sido, porque fui embora antes de sabê-lo. Estava com sono, e desgostou-me muito saber que eu estava ali somente para ouvir venda.
Quando lá chegara, às duas da tarde, estavam tocando música gospel nos alto-falantes, por onde vi que se tratava de homem que usa capa de cristão. E não é que não creia em Deus: é que também com Ele negocia, e sua visão sobre verdade e honestidade é flexível, o que é dizer pragmática. Nem é também que esteja manipulando e mentindo; antes ajustando a verdade. Porque, se a verdade não está de acordo com dados desígnios, cumpre emendá-la.
Esses palestrantes de massa são tão parecidos que, em investigando o que possuiriam de dessemelhante, não encontrei coisa alguma, porque em tudo são tão iguais como produtos da indústria: e o que seriam senão isto mesmo? Porque não existem para emitir uma mensagem, senão para atender uma demanda. Uma demanda por oradores que sejam de um determinado tipo e digam determinadas coisas, e semelhantíssimos sejam no teor do que falam, e no jeito da voz, e no jogo de corpo, e nos meneios, e nas pilhérias, e no vestir, e nos truísmos, e no afetar tons de oráculo, e ainda no público. São os sofistas modernos, que, por uma boa quantia, ensinam os homens a serem melhores.
E certamente o conhecimento dos nomes não é assunto de pouca monta. Ora, se eu tivesse frequentado o ciclo de palestras de Pródico [famoso sofista da época] que custa cinquenta dracmas, graças ao qual, conforme ele próprio afirma, um indivíduo obtém instrução completa acerca dessa matéria, nada haveria que te barrasse o imediato aprendizado da verdade em torno da correção dos nomes. Entretanto, como ouvi apenas o curso de uma dracma, desconheço a verdade acerca dessa matéria.[3]
E eu, como não comprei o livro, nem mesmo o ingresso, pois era palestra gratuita, não tive o direito de aprender nada, senão de ouvir uma venda, vez que, não tendo sido o comprador, fui então o objeto comprado.
[1] Manuel Pinheiro de Chagas, Poema da Mocidade.
[2] Platão, O Banquete, Edipro, p. 43.
[3] Platão, Crátilo, Edipro, p. 38.
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