Tenho um amigo que, se não o conhecesse e soubesse das coisas que já fez, nem da forma como dirige, tê-lo-ia por covarde, dado omitir-se com tanta frequência em toda questão a que é chamado a opinar. Ele não gosta de se comprometer, e parece querer reunir toda a informação do mundo antes de dar uma opinião – o que para mim não é prudência, e sim cobardia. “Sê bravo e paciente e de maneira viril diz o que pensas.”[1] Se fosse conduzir-me pela régua desse amigo, por certo não daria de falar dos pobres e emitir um parecer geral sobre essa categoria sem antes ler alguns livros especificamente sobre isso, e fazer um estudo antropológico, e ser eu mesmo pobre durante alguns meses, senão anos. Aí sim, se eu fosse como esse meu amigo, é que eu me aventuraria a dizer uma ou duas palavras, ainda assim com curvas e ressalvas, e algum receio.
Mas eu não sou como o Enzo.
Assim que faço uma observação e fico, como diria Nietzsche, grávido de uma ideia, quero logo pô-la no papel, para deleite meu e vosso. E nada ma impede de emitir, seguro que sou da minha capacidade de extrair o geral do particular. Sou muito seguro da minha inteligência e das observações que faço. E seguro a ponto de voltar atrás e assumir o erro caso me engane, porque somente uma pessoa com boa autoestima consegue assumir o erro, e de erro em erro se ir emendando. Também conto sempre com a inteligência do meu leitor, pois não escrevo para analfabetos funcionais, de modo que não temo ser em tudo interpretado ao pé da letra nem ser com má vontade lido.
O que vou falar dos pobres são as observações que tenho feito a respeito de seus comportamentos e valores, estando eu morando em um bairro considerado de classe média baixa há já um ano. A primeira experiência que tive aqui a esse respeito foi no supermercado, quando vi uma pessoa obstando a passagem sem dar por isso. Era como se, em sua cabeça, ninguém mais fosse ali passar. Se ao brasileiro em geral falta o senso de dever, ao pobre em particular falta o senso de espaço. Ele se esquece de que por ali poderão outros passar e abandona-se junto a seu carrinho na passagem. Cheguei a ver uma mulher esquecer o carrinho ao passar pelo caixa, atribuindo a mim a incumbência de o empurrar adiante. Já fostes tão criativos a ponto de imaginardes semelhante coisa? Deixar o carrinho para trás para outro empurrar! Então que vi que ao pobre falta consciência de si e do mundo. É estreita a sua visão. Vede: não falta consciência, e até senso de coletivo, a quem deixa suas bicicletas na calçada, obrigando os transeuntes a desviarem pela rua? É o que encontro amiúde na calçada de uma barbearia do bairro. Eles largam suas bicicletas na calçada, como fosse bicicletário, e entram para conversar e ouvir trap. Aliás, o gosto musical do pobre é digno da sua condição. E não só o gosto musical, mas o gosto para tudo, faltando-lhe, junto com o senso de dever e de espaço, o senso estético. Isso se vê nos cabelos que mandam colorir sofrivelmente nas barbearias, ficando a parecer atrações do trenzinho do horror, nas roupas largas e estampadas de que abusam, sem nenhuma harmonia e adequação, nos trejeitos linguísticos que os fazem soar como povos originários, e no desleixo em geral com o corpo.
O desleixo com o corpo, isso é típico dos pobres. Neste bairro, foi a primeira vez que vi uma moça jovem e bonita fumando um cigarro na rua em plena terça-feira, como se estivesse em um bar, e aliás estava vestida feito uma prostituta, sem no entanto sê-lo. A respeito disso, a moral sexual dos pobres é mais “livre”, por assim dizer, e nisto não vou sozinho:
A inibição ideológica e educacional da sexualidade, por um lado, a apreciação e assistência dos acontecimentos mais íntimos entre os adultos, pelo outro lado, já põem na criança a base da hipocrisia sexual. Isso ocorre de forma mais branda nas famílias dos operários, onde se dá menos ênfase às funções nutritivas e digestivas, enquanto as atividades genitais são mais evidentes e menos proibidas. Os conflitos aí são menores, e o caminho para a genitalidade é mais livre. [...] Enquanto na família da pequeno-burguesia a repressão sexual ocorre de maneira mais ou menos completa, no meio operário ela é mitigada pela supervisão necessariamente mais reduzida das crianças, que ficam frequentemente mais tempo sozinhas.[2]
Dizia eu que fumam, e não só isso, descuidam da saúde como um todo: odeiam alimentar-se bem e amam a folgança. Bebem como um estilo de vida. Idolatram, na verdade, o álcool. É quase como uma religião. E, por falar nisso, a única coisa que há neste bairro mais do que botecos são igrejas. Igrejas de fundo de garagem, feias, pequenas, fedorentas, onde aqueles que não bebem se entorpecem com fantasias sobre um deus maligno e autoritário. Penso que a abundância de igrejas em lugares pobres se deve a que nesses lugares as pessoas são mais ignorantes, o que as deixa mais suscetíveis a superstições e enganações – pequenas igrejas, grandes negócios –, e mais desesperadas por qualquer coisa que lhes possa reduzir o martírio, ainda que venha acompanhado de uma ameaça: “Se não fizeres o que mando, vais para o inferno”.
Como eu conheço o estilo musical do pobre? Sou obrigado a ouvi-lo. Quanto mais miserável o vivente, maior a caixa de som: o silêncio, artigo de luxo, bem longe vai da pobreza. Põem-se as caixas de som em alto volume, já por exibir-se, já pensando agradar o ouvido alheio, mas no fundo pode ser simples falta de noção – a mesma que os faz jogar lixo na rua. Que é sua música afinal senão lixo em forma de ondas? Ouvir música alta é agradável, e para isso existem as salas com isolamento acústico e os fones de ouvido. Mas o pobre quer impor a sua presença no mundo sem se importar com os outros.
O ruído é a mais impertinente de todas as interrupções, uma vez que interrompe, ou melhor, quebra até mesmo nossos pensamentos. No entanto, onde não há nada a ser interrompido, certamente ele não chega a incomodar.[3]
Outra característica notável nos pobres é a sua obsessão por violência. Enquanto os indivíduos das classes média e média alta são obcecados com status e futilidades, os pobres o são com mortes, assassinatos, acidentes e desgraças. Não resistem a comentar sobre a morte de um parente, o acidente de um estranho, um atropelamento de que ouviram falar, um assassinato por motivo torpe, a doença voraz de um, o fim trágico de outro. Isto sem contar as histórias tristes que contam que não envolvem violência, mas ainda encerram outros vícios. Sabe-se bem que é nas classes baixas que acontecem os crimes mais bárbaros. Hoje eu entendo por quê.
Um dia desses eu entrei em um site excelente que contém várias obras de pensadores comunistas, o marxists.org. Por acaso lá encontrei Eça de Queirós, o qual eu jamais imaginei que tivesse sido membro da I Internacional. Havia somente um texto seu, chamado O Povo, em que exaltava o povo como “uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligência serena e lúcida, com dedicações profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem”. E isto já no primeiro parágrafo. O textículo inteiro é um louvor a essa raça de homens chamada povo e que termina assim: “É por isso que os que têm coração e alma, e amam a justiça, devem lutar e combater pelo Povo. E ainda que não sejam escutados têm na amizade dele uma consolação suprema”.
Eu já sabia que o comunismo era uma teoria de idiotas e delirantes, mas tais casos ainda me admiram. Como pode um homem considerado um arguto observador da realidade social, como o foi Eça de Queirós, não perceber que o povo não passa de uma triste massa de bestas e brutos? O sutil observador ainda dirá: “[...] forma-lhes em redor uma servidão que os prende a uma miséria que os esmaga; não lhes dá proteção; e, terrível coisa, não os instrui: deixa-lhes morrer a alma”, querendo com isso dizer que o povo é assim porque alguém o fez assim. Frequente nas teses comunistas é a inversão. No comunismo, o criminoso é a vítima, o roubo é a justiça, a propriedade privada é o roubo. Assim, como não poderia deixar de ser, o povo é que é a flor e luz da sociedade. E um indivíduo é como é não por suas escolhas, mas pelas de outrem.
O pobre não é assim porque é pobre. É pobre porque é assim. “A riqueza material é somente uma metáfora da verdadeira riqueza, a prova dos nove de um estado de integridade, de inteligência, de prosperidade interior.”[4] Escassez de recursos nunca foi um problema moral. Ninguém é pior por possuir menos. O problema reside no espírito de pobre, na mesquinhez, na pequenez de alma. O pobre típico é esse indivíduo pobre de espírito, rude, quase animalesco, que, quando vê o bolo de aniversário da cidade, leva de casa um balde para lutar na balbúrdia pelo seu desfigurado quinhão. E isto é o povo. Aqueles que não vivem nessa mentalidade, ainda que tenham nascido na miséria, logo conseguem alguma dignidade. Porque a dignidade está neles, e não no que possuem. Meu avô, Dr. Pedro Theodoro, calçou o primeiro sapato aos dezessete anos, teve uma infância difícil e uma juventude mais difícil ainda, lavando banheiros no Colégio Americano para estudar, e por sua fé e determinação formou-se advogado na segunda turma de Direito da Universidade Federal do Espírito Santo. Seu irmão mais velho, Dr. Antário Alexandre, dizia: “Não importa o ninho, se o ovo é de águia”. Já eu digo: um porco que nasce no estábulo não se torna um cavalo. Não adianta dar boas condições a um povo que deseja rolar na lama. “Toda nação tem o governo que merece.” É um lugar-comum na Filosofia Política que o feitio do governo segue o feitio do povo. Psicanaliticamente, o governo é sempre a projeção da média das consciências da população. O problema de todo país é sempre o povo. Quem define a organização política de um país é sempre a maioria, pois uma minoria não pode dominar uma maioria sem o consentimento desta. “O tirano nada mais é do que uma pessoa, e dificilmente poderia obter a obediência de outra pessoa, muito menos de um país inteiro, se a maioria dos súditos não consentisse com esta obediência.”[5] Portanto:
são os próprios povos que se deixam, ou melhor, se fazem dominar, pois cessando de servir estariam quites; é o povo que se sujeita, que se degola, que, tendo a escolha entre ser servo ou ser livre, abandona sua franquia e aceita o jugo; que consente seu mal – melhor dizendo, persegue-o.[6]
Então, aquele texto de Eça de Queirós é bom objeto de riso, como toda romantização do povo e dos pobres de que está cheia a literatura.
Outro dia fui ao McDonald’s e desgostei-me tanto que era quase melhor não ter ido. Perderam-me o pedido e tive de contar com a boa vontade de uma atendente que – por acaso – eu conhecia. Notei que todos no estabelecimento estavam insatisfeitos com o atendimento, e que dentro nas instalações havia um misto de caos e incúria. A ausência de liderança era nítida. Quando abri a caixinha do hambúrguer, estava este tão mal montado – dir-se-ia "desconstruído" – que pareceu-me terem sido ali jogados de qualquer maneira os ingredientes. Os outros clientes e os meus amigos talvez notaram a falta de organização, mas o que não devem ter notado é que estavam sendo atendidos por pessoas que sentem por eles profundo despeito. Os pobres em geral, sobretudo os jovens, sentem profundo despeito dos jovens ricos e de classe média, a quem chamam pejorativamente de “playboys”. Foram criados na mentalidade da luta de classes, da inveja e do vitimismo, e acreditam que a diferença social que os separa é injusta. Então, não me surpreende que eles lhes sirvam a comida como se estivessem a lançar restos a cães. Sinto-me até grato, na verdade, por não cuspirem no meu lanche.
Esse ódio somente a eles sabota. Toda pessoa que já leu dois ou três livros de autoajuda sabe que não podemos nos tornar aquilo que desprezamos: de modo que o pobre, pelo seu ódio aos ricos, tende a permanecer pobre.
As pessoas de mentalidade pobre costumam olhar para o sucesso alheio com ressentimento, ciúme e inveja. Ora alfinetam com frases do tipo "Que sorte eles têm!", ora sussurram "Esses ricos idiotas". Se você quer ser uma pessoa boa, mas considera os ricos naturalmente maus, nunca será um deles. É impossível. Como você pode ser algo que despreza?[7]
Mas não possuem os pobres somente más qualidades.
O pobre costuma ser mais afetuoso e caloroso, tem menos pudor de demonstrar seus afetos. Também costumo ver aqui uma lealdade maior, e uma maior preocupação com o vizinho. No bairro onde eu morava, embora conhecesse meus vizinhos, nunca fui chamado a suas casas. Aqui, nos primeiros meses já fui convidado a um churrasco, e mais de uma vez. Receberam-me com alegria e fartura, e me trataram sem cerimônia. Senti-me à vontade e acolhido, não havendo ali necessidade alguma de usar máscaras e afetar modos, coisa típica das classes superiores. Foi também entre os pobres que aprendi a arte de dialogar sem objetivo. Nas classes mais altas, toda conversa precisa ter uma finalidade, funda-se num interesse. Não se sabe palestrar pelo simples gosto da palestra. Um indivíduo da classe média só conversa com outro por conveniência, e sempre se escondendo atrás de uma máscara, pois aí as aparências importam muito. Já o pobre domina a arte da conversa sem pretensão nem destino, apenas por prazer, coisa típica da roça e que eu não conhecia até vir morar aqui.
Aqui também conheci algo que só havia visto em filmes americanos: a barbearia cheia de homens, sempre os mesmos, todos a dialogar. É comum irem à barbearia para esse fim tão somente. E isso vejo em mais de um estabelecimento. Também eu peguei esse costume, e com frequência paro em um ou outro estabelecimento cujo dono é meu amigo e lá fico matando o tempo em um colóquio sem futuro. Quando é que alguém criado na mentalidade pequeno-burguesa, no fetiche da produtividade, se permitiria desperdiçar seu precioso tempo conversando com quem lhe não poderia oferecer um negócio, um contato, uma filha? Pois sim, dessa loucura fui curado.
Um desses amigos é o Aldeir, dono de uma vendinha onde me faço presente com tanta frequência que por pouco se não dirá que estamos a mover conspiração. Ali param também o Rafael, um porteiro com olhar de criança, e o Alex, vendedor de tudo e barbeiro. Nossas conversas, quando calha ao acaso ali nos juntar, vão dos temas mais banais aos mais graves, sempre levadas por um humor e uma despretensão tão genuínos que tornam esses momentos uma verdadeira camaradagem. Nessa vendinha eu aprendi, de maneira direta, que não importa o nível de cultura e até de consciência de uma pessoa, quando se trata de ser agradável. Boas conversas promanam de boas personalidades, e às más não adianta acrescer livros, que não deixarão de ser más.
Também aprendi que está o bom senso hoje com os simples, que da realidade têm tido melhor visão que os acadêmicos e os letrados. Na Idade Média, o estudioso tinha uma visão mais perfeita da realidade, porque estudava. Já hoje o estudo afasta o homem do real e o põe no imaginário, no abstrato sem correspondente, e imputa-lhe nomes feios caso ouse acreditar verdades não autorizadas. O pobre, isento dos livros, acaba sendo menos idiota que um idiota que não só estudou para sê-lo como persuadiu-se de sabedor. Ainda assim, é pior um pobre da universidade pública do que um pobre sem instrução alguma, porque aquele ainda juntou, ao mau nascimento, a arrogância dos títulos e a estupidez das doutrinas. Ser o simples mais atilado que o estudioso é sinal de que as academias já são lugar para estar longe.
A pobreza material é ruim, a espiritual é intolerável. Se o rico não herdará o reino dos céus, nem tampouco o há de herdar o pobre, que em muito pior vai que os ricos nos seus costumes. A pobreza é um estado de espírito, antes de ser um estado de coisas. Segundo o tridimensionalismo do nosso Reale, advêm as leis dos valores que a sociedade elege. Dos valores se fazem as normas; das normas, as instituições; e destas, a riqueza ou a pobreza das nações. A pobreza não tem causa: como a nudez, nasce com o homem. A riqueza tem-na clara: a propriedade privada. Sem isto, nenhum povo enrica, e o rico volta a ser pobre.
[1] Platão, Teeteto.
[2] Wilhelm Reich, A Revolução Sexual, p. 60.
[3] Arthur Schopenhauer, A Arte de Insultar, p. 178.
[4] Elio D’Anna, A Escola dos Deuses, p. 362.
[5] Murray Rothbard, em “A Filosofia Política de Étienne de La Boétie”, pp. 18-19.
[6] Étienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária.
[7] T. Harv Eker, Os segredos da mente milionária.
Comments