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Do Pastor Mirim e outros enganos


Gustave Courbert, "As Dorminhocas", 1866.
Gustave Courbert, "As Dorminhocas", 1866.

Deve estar o bom leitor admirado de descer este autor a tão baixa matéria. O advento de um charlatão religioso é tópico mais próprio à mídia plebeia do que a quem prefere os temas eternos e universais. Contudo digo-vos que na pena eloquente toda matéria é própria e fecunda. Isto me ensinou uma carta de António de Guevara em que, respondendo a acusação de ter furtado uma poma olorosa a um cavaleiro, escreveu uma catilinária contra o uso de perfumes e outros efeminamentos, associando esses hábitos à degeneração moral e ao declínio social. De qualquer vulgaridade fazia o padre espanhol um ensaio ou homilia de eterno valor. Não há assunto ruim em boa pena. E, ainda que o tema caduque, resta a forma, cuja beleza o tempo aviva. Não quero dizer que vai em tal molde o meu engenho, mas que é pelo menos esse o meu engano.


Não tema o leitor que eu seja processado por chamar o garoto de charlatão, porque este sítio é tão retirado que nunca lhe chegará aos ouvidos essa diatribe, e se chegasse tenho por certo que me pediria antes para retratar-me ou apagar o escrito do que responder intimação, e fá-lo-ia eu sem pruridos de liberdade ferida. Sigamos então com a sinceridade máxima a que se pode entregar num escrito, sem medir palavras e sem medo de ofender. Meu único temor é reduzir este texto a truísmos, visto que o que direi sobre o pastor mirim é imediatamente evidente a qualquer de meus leitores. Escrevamos, porém; sigamos. Pois é por prazer que o fazemos, e tem a língua seus divertimentos próprios.


A religião em geral é uma enganação. O cristianismo em particular é uma prisão mental terrível. A Bíblia é um livro maligno. Basta lê-la para se ter essa impressão. Em qualquer página que se lhe abra, a sensação é de culpa, terror, dúvida, angústia e feiúra. E o objetivo dos religiosos é seguir uma doutrina em vez de atingir a suprema realização – que é o propósito real da religião corretamente compreendida. A religião, assim, é um meio tornado em fim. E com a corrupção do meio vem a confusão dos resultados. E um desses resultados é o surgimento de charlatães, coisa que a Reforma tornou não só possível como inevitável. Qualquer idiota pode pegar uma Bíblia e berrar no púlpito, inclusive um adolescente de catorze anos com um talento tão extraordinário para a enganação que parece ter subido do inferno. Nunca vi um jovem tão confiante e astuto. Mente com tal desenvoltura e descanso de consciência que parece o próprio diabo. É um prodígio da enganação. Uma mistura bem-sucedida de Edir Macedo e Pablo Marçal. Seu único erro foi exagerar na dose e, por causa disso, ter perdido o direito de ministrar cultos. Seus colegas mais velhos – Pedir Maiscedo, Silas Malacheia, Valdemiro Noseubolso etc. – respeitam os limites da burla, e por isso são prudentes. Já o garoto, talvez pela pouca experiência, foi tão longe que até em um país de imbecis como o Brasil ele foi tido por enganador e proibiram-no de pregar.


O primeiro elemento que o denuncia como enganador é o estilo inautêntico de oratória. Um orador sincero, que fale do coração, terá um estilo próprio. Já aquele que imita e afeta um modo consagrado revela-nos que sua intenção é o aplauso. É o caso dos coaches de palco, os sofistas modernos. Se notardes bem, todos empregam a mesma entonação. Assim também os pastores de estilo assembleiano. Aliás, detenhamo-nos um pouco aqui. Não existe em todo o mundo um estilo mais detestável que esse: o microfone colado na boca, a voz gutural, os gritos e berros sem propósito – tudo contribui para pensar-se que se trata antes de um culto ao Diabo que a Deus. O mau gosto que se manifesta nessas igrejas, tanto em termos de música, quanto de comportamentos e vestimenta, é o sinal da sua maior proximidade com os aspectos bestiais da alma humana. Ser-lhes-ia insuportável um ambiente de silêncio e reflexão, já que a sua psicologia primeva prefere o caos, a balbúrdia e o espetáculo.


O segundo fato que revela o charlatanismo do pastor mirim é o falso falar em línguas. Como fui criado na igreja evangélica, já presenciei esse fenômeno e é real, e digo que é fácil discernir o falso do verdadeiro. E o falar dele em línguas é não só falso como esdrúxulo, e só mesmo um bando de dementes para acreditar. Como se tais fingimentos não fossem o bastante, ele ainda se digna traduzir a língua estranha que sai da boca de outro. Para quem não sabe, o indivíduo que é tomado por línguas estranhas não sabe o que diz; ele se torna apenas um canal daquela manifestação. Se nem o próprio falante entende, quanto mais um terceiro. Esse é, então, o terceiro fato.


O quarto fato que o denuncia como charlatão é a sua cupidez. Pastores, uma vez que não cobram para pregar, devem pedir dízimos e ofertas, e dá-lhos quem quer. Os mesmos que criticam a prática de colher dízimos e ofertas, que são doações voluntárias, não veem mal na tributação, que é roubo puro e simples, e ainda defendem que todos sejam igualmente roubados. O pastor, porém, que exagera no peditório e disfarça mal a cobiça passa por abusador e com razão, sobretudo quando tem um estilo de vida repleto de vaidades.


Chamar-se profeta, não o sendo, é o quinto sinal, e o sexto é declarar curas, não curando. E o faz ele ainda por tal modo que não cura em nome de Jesus, que é o modo cristão, mas em nome de si mesmo. Arroga-se portanto a si semelhante poder, que não tem. No fundo, deve invejar a Cristo. Por essas e outras razões tenho-o por perigoso e deplorável e fico satisfeito em assistir ao seu declínio. Mas lembrai-vos de que ele é só o mais alardeado dos charlatães, e um político só em princípio de carreira. Calá-lo representa pouco, como remover um fruto da árvore envenenada, ou prender um peido, estando cagado.

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