Desde certa idade sentia eu uma estranha dificuldade em ser compreendido, não no que dizia respeito a meu caráter e ações, mas no que tocava ao próprio discurso. E via que estava sendo incompreendido porque, embora me esforçasse por ser claro, as respostas que ouvia não pareciam guardar congruência com o que eu dizia, e assim era como se ouvisse resposta a discurso diverso. Vendo então que, não obstante a clareza, um discurso era comumente respondido como fosse outro, tornei-me um tanto desconfiado, pensando que nunca era de fato compreendido no que dizia, a não ser por uns poucos.
Não se tratava de não ser compreendido de modo algum, mas de não sê-lo o suficiente, escapando amiúde ao ouvinte não somente as camadas mais profundas da expressão – como os seus aspectos literários e psicológicos –, mas até a mais superficial camada, a gramatical, de modo que tinha eu de reformular minhas alocuções duas ou três vezes antes de ser mais ou menos compreendido, cada reformulação representando um declínio na qualidade do dizer, em termos de beleza, profundidade e acerto. E semelhante dificuldade tornava manco o diálogo, e caolha a conversação. Havia também aqueles momentos em que, tal era a sutileza do discurso, segundo a parca capacidade do ouvinte, que eu podia testemunhar seu olhar obtuso como uma janela aberta a um espírito oco, fingindo contudo compreender-me. Isso porque o brasileiro, além de não possuir cultura, é ainda orgulhoso e não quer passar por néscio. Mas, quando isso acontece, ira-se é com o interlocutor, a quem julga soberbo por esbanjar suas luzes, ainda que essas luzes sejam tão somente o uso de uma palavra menos comum do idioma.
Esse drama ainda o vivo hoje, porque a média dos meus concidadãos em nada melhorou, senão que piorou e descambou, tendo eu me adaptado no entanto por recurso de dois expedientes: o primeiro é falar menos, que a língua é o chicote do corpo, e quanto menos se fala, menos se enreda; o segundo é diminuir o nível do discurso, para ajustá-lo a estúpidos. Não digo isso para ofender ninguém, mesmo porque quem seria capaz de se ofender com isso não sabe ler, e se lesse não entenderia, e porque também estou sendo apenas sincero, e é maior meu compromisso com a verdade do que com os sentimentos alheios. Enfim, digo-o sobretudo para aconselhar aqueles que, ainda em estado de ingenuidade, acreditam, quando conversam cotidianamente, estar falando com iguais. Isso é perigoso, porque do não entender para o se ofender é passo curto, e ser mal compreendido por quem nada compreende é coisa fácil. Nos dias de hoje, em que opinião é confundida com repreensão, e meu gosto com minha luta, semelhante cautela faz-se imperiosa.
Uma vantagem deste estado de coisas é ser este blogue incancelável: porquanto aqueles que têm mentalidade para cancelamentos e se preocupam portanto em fiscalizar e condenar as outras pessoas, esses nada têm que ver aqui, um espaço para a última aristocracia do espírito, e mesmo se aqui vierem não poderão decodificar este linguajar, que antes lhes parecerá um grimório ou uma tradução de Odorico Mendes. De modo que estes textos, públicos e divulgados, se encontram mais protegidos que bitcoins perdidos e encriptados.
Ora, é cada vez maior a distância entre a aristocracia do espírito e a massa plebeia, dado que a revolução informacional acelerou tanto a queda quanto a ascensão dos indivíduos, e dentro de alguns anos suspeito que a diferença moral e intelectual que haverá entre os grupos que sobem e os grupos que descem provocará a formação de duas novas ordens ou castas na sociedade.
Conheço e acompanho um programa na internet chamado Podcast Desinformação, e vejo o quanto eles pelejam para mostrar que o que falam é o mais das vezes mera troça. Tão fino e tão sofisticado humor, que talvez não estivesse ao alcance intelectual de ribeirinhos, boias-frias e miseráveis, escapa até mesmo ao brasileiro comum da classe média, com luz elétrica, água encanada e barriga cheia. Isso porque a burrice do brasileiro é não só uma escolha; é uma tradição.
O brasileiro deve ser o único povo civilizado do mundo que não tem sofisticação intelectual para captar ironias. Ele sabe o que isso vem a ser em tese, mas na prática frequentemente ele toma ironia por declaração franca e se admira de absurdidades que escuta até mesmo de humoristas. É o único povo do mundo que confunde ironia com opinião e, tomando piadas por argumentos, confunde humoristas com filósofos.
Porquanto a absurdidade e o contexto mesmo das piadas não são suficientes para que se entenda tratar-se de humor, e não de sincera opinião, os apresentadores do Podcast Desinformação (cujo título já diria tudo) recorrem ao artifício de colocar músicas e sons idiotas para deixar ainda mais claro que o que estão fazendo ali é comédia. Mesmo assim, vez por outra, recebem admoestações de ouvintes ultrajados.
O problema é tão grave quanto se mostra a seguir: é que falta ao brasileiro não somente o conhecimento técnico do idioma: faltam-lhe ainda as experiências subjetivas necessárias para compreender discursos que voem para um pouco além do superficial e do banal; nem lhe assiste tampouco imaginação para compensar a falta dessas experiências, pois não possui capacidade abstrativa. Faltam-lhe, assim, a técnica, a sensibilidade e a inteligência. Em resumo, o brasileiro é um animal falante. Como diz Hans-Hermann Hoppe acerca dos animais, é possível com eles falar, mas não se comunicar.
Embora uma pesquisa de 2018 afirme que, da população brasileira, apenas 29% são de analfabetos funcionais, diria eu que a rigor essa porcentagem deve ser no mínimo 90%, uma vez que até médicos, advogados e doutores se mostram incultos e imbecis, não sabendo empregar o idioma nem compreendê-lo a contento.
A esse respeito, digo que existem quatro níveis de proficiência literária. O primeiro é a improficiência, o analfabetismo. O segundo é saber manejar o idioma segundo as regras da gramática e da redação, o que se espera de qualquer colegial. O terceiro é empregá-lo com boa retórica, comunicando-se com clareza e elegância. O quarto é o domínio pleno, em que o compositor goza de estilo literário, sabe navegar entre os gêneros e imitar outros estilos. Dado isso, tenho para mim que os mais refinados espíritos no Brasil encontram-se no segundo nível, e que encontrar alguém nesse nível já é motivo de celebração e glorificação a Deus, e que a nata dos níveis superiores é coisa tão rara quanto um homem honesto.
Mesmo aqueles que sabem escrever, e não escrevem como uma criança do primário, costumam se expressar à maneira de um adolescente, por modo que o problema no Brasil não é apenas a improficiência linguística, mas sobretudo a imaturidade permanente.
Por fim, não se trata apenas de não compreender o que se diz do ponto de vista gramatical – que isso também acontece, visto que o brasileiro não sabe nem o significado das palavras –, trata-se ainda de não captar o referente, isto é, a experiência ou o objeto real a que o discurso se refere. Essa incapacidade se dá em razão da extrema exiguidade do mundo interior do indivíduo, que não consegue vislumbrar nem compreender nada que não saia de um pacotinho de banalidades.
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