Eu estava num café com dois amigos e discursava contra a religião, mais precisamente – contra o cristianismo. E dizia que era o cristianismo tão despropositado para os tempos de hoje, que um cristão é verissimamente semelhante a um moderno em vestes antigas, como andasse pelas ruas usando túnicas e trajes que se usavam há dois mil anos. Ele carrega uma estética feia e extemporânea, daí causarem tanta repugnância a quem tem bom gosto seus trajes, modos e discursos, que têm o feitio de um estranho anacronismo. E, se ainda trazem a feiíssima estética da Bíblia, lá deixam contudo os bons costumes e as regras, seguindo o que lhes dá na telha, como se fossem os deuses de si mesmos.
Dizia eu também que havia visto um admirável homem por nome Guilherme Freire tentando convencer alguém de que a sua religião – o catolicismo – era a única religião verdadeira, e comentei que era o seu discurso absolutamente inútil e vazio, meramente ideológico, e que em nada contribuía para o que realmente importa no mundo: a evolução do ser. E enquanto eu dizia isso um casal que se sentava ao lado me ouvia, e lhes chamou tanto a atenção meu discurso, que pararam de conversar entre si e deram-se unicamente a ouvi-lo. Notei que o sujeito me olhava, não sei se com alguma hostilidade, mas decerto sem nenhuma simpatia, e continuei falando até findar o raciocínio. Meus amigos ficaram incomodados. Quando foi embora o casal, mencionamos que são assim mesmo os que estão dormindo: ficam enriçados quando ouvem o que lhes abala o sonho, se bem que aquele homem deveria, em vez de se preocupar com o que dizia eu em minha mesa, preocupar-se sim com a mulher feia que se sentava na sua, e livrar-se dela o quanto antes, atinando que é mais vergonhoso andar por aí de mãos dadas com uma feia do que se dizer cristão sem efetivamente o ser e embirrar com quem detrata a sua religião de fachada.
O mesmo Guilherme Freire, em outro lugar, acreditou provar a existência de Deus através dos argumentos de São Tomás de Aquino e Aristóteles, que dão na verdade de ser o mesmo argumento sob diversas roupagens, como o são também as cinco vias de São Tomás, que são uma e mesma via sob diversos termos. Para recapitular os argumentos em favor da existência de Deus, os quais são todos improcedentes, recorri a um pequeno livro de nome Sobre Deus, de um grande filósofo católico chamado Mário Ferreira dos Santos, homem cultíssimo e justissimamente admirado. E vi em seu livro um argumento que eu não conhecia e que à primeira vista me pareceu irrefutável, o qual consistia no seguinte.
É evidente em máximo grau que alguma coisa há, pois, se nada houvesse, nem mesmo essa afirmação de que nada há seria possível, logo algo existe. Porém, continua o argumento, se algo existe, esse algo não poderia ter começado a existir do nada, pois nesse caso algo já haveria, e portanto não seria o nada. Logo esse algo deve ter sempre existido. E não só sempre existido como capaz de originar tudo quanto existe, contendo em si todas as potencialidades, sendo portanto eterno e onipotente. Ora, isto é Deus. Logo, Deus existe. Contudo, esse raciocínio erra onde erram todos os outros da mesma estirpe: traz à imanência o que pertence à transcendência.
Ora, se alguma coisa há, é evidente há em algum lugar e de algum modo, pois é impossível algo haver em nenhum lugar e de modo algum. Porém, havendo lugar e modo, há limites, o que desnatura o conceito mesmo de Deus, que é infinito e incondicionado. Logo, essa coisa que há não é Deus.
Santo Anselmo e Descartes, por sua vez, argumentaram que, se Deus é perfeito e infinito, é evidente que ele existe, pois um ser dessa natureza não poderia não existir. O problema desse argumento – chamado argumento ontológico – é postular uma essência do divino. Ora, essência é uma coisa pelo que algo é o que é. Uma essência pressupõe, portanto, uma forma, pois uma essência vazia, sem forma, é uma essência de coisa alguma. Mas, se tem forma, tem limites, e, em os tendo, não é Deus.
O argumento mais famoso, no entanto, é o chamado argumento cosmológico, que é a forma geral dos argumentos de Tomás de Aquino e Aristóteles, e que diz assim: se tudo tem uma causa, deve haver alguma coisa que não teve causa e a partir da qual tudo se gerou, do contrário somos levados a uma regressão infinita, o que é um absurdo. Porém, uma vez invocado o princípio da causalidade, ele não pode ser abandonado de livre talante sem que seja, por isso mesmo, contradito. “A prova cosmológica”, diz Arthur Schopenhauer, “consiste propriamente na afirmação de que o princípio de razão do devir, ou a lei da causalidade, conduziria necessariamente a um pensamento, pelo qual ele próprio seria suspenso e considerado nulo e vazio.”[1] Segundo Kant, o problema da prova cosmológica é incluir na série de sucessão de eventos um elemento que, por definição, lhe não pertence. “Se, no entanto, inicia-se a prova cosmologicamente, colocando-se como fundamento a série de fenômenos e o regresso nela segundo leis empíricas da causalidade, não se pode depois saltar para fora dela e passar a algo que absolutamente não é um membro da série.”[2] Ou Deus pertence à série dos eventos, e assim é causa, mas também efeito, ou ele não pertence a essa série, e logo o princípio da causalidade não se aplica a ele. “A causa prima, tanto quanto a causa sui, é uma contradictio in adjecto.”[3]
Além disso, é impossível chegar a uma conclusão racional sobre a origem e os limites da existência. Se a existência possui um começo, antes do qual não havia nada, então ela nunca poderia ter vindo a existir, pois do nada nada provém. Se, contudo, ela sempre existiu, há um tempo infinito entre o antes e o agora, de modo que, nesse infinito, o ponto presente no tempo nunca teria chegado, o que é absurdo. Logo, os limites do universo sob qualquer ponto de vista não são finitos nem infinitos, mas indefinidos. Para a razão, nenhum progresso ou regresso no tempo e no espaço, bem como na causalidade e na matéria, pode se dar ad infinitum, mas avança ad indefinitum, como o mapa de um videogame que, não sendo infinito, tampouco encontra um limite, pois se forma à medida que se nele avança.
Assim, o conceito mais preciso que se tem de Deus é o ápeiron de Anaximandro, filósofo grego pré-socrático. Esse conceito indica justamente aquilo que não tem nenhum limite.
O termo empregado por Anaximandro é á-peiron, que significa aquilo que está privado de limites, tanto externos (ou seja, aquilo que é espacialmente e, portanto, quantitativamente infinito) quanto internos (ou seja, aquilo que é qualitativamente indeterminado). Exatamente por ser quantitativa e qualitativamente ilimitado, o princípio ápeiron pode dar origem a todas as coisas, delimitando-se de vários modos. Esse princípio abraça e circunda, governa e sustenta tudo, porque, como delimitação e determinação dele, todas as coisas se geram dele, consistem e são nele.[4]
Também o Um de Platão possui os mesmos atributos e contradições, sendo e não sendo tudo:
“Bem, então”, ele disse, “se o uno existe, não é possível que o uno seja múltiplos, não é mesmo?” “Não, é claro que não.” “Consequentemente, não é possível que haja partes dele, como tampouco pode ser ele um todo.” “Como?” “A parte decerto o é de um todo.” “Sim.” “E o que é o todo? Não é um todo aquilo de que não falta nenhuma parte?” “Certamente.” “Conclui-se que em ambos os casos o uno consistiria de partes, sendo um todo e possuindo partes.” “Necessariamente.” “Ora, então em ambos os casos o uno seria múltiplos, não uno.” “É verdade.” “Contudo, é imperioso que não seja múltiplos, mas uno.” “É imperioso.” “Então o uno, se é para ser uno, não será um todo, bem como não possuirá partes.” “Não.”[5]
E mais à frente:
“Sendo tal a sua natureza, não é necessário que o uno esteja tanto em movimento quanto em repouso?” “Como?” “Não há dúvida que está em repouso se está em si mesmo, pois estando em um e não ultrapassando isso, está no mesmo, a saber, em si mesmo.” “Assim é.” “Mas aquilo que está sempre no mesmo, está necessariamente em repouso.” “Decerto.” “Bem, não é necessário, ao contrário, que aquilo que está sempre no outro nunca esteja no mesmo, e nunca estando no mesmo não esteja em repouso, e uma vez não estando em repouso esteja em movimento?” “Precisamente.” “Portanto, o uno, estando sempre em si mesmo e no outro, está sempre necessariamente em movimento e em repouso.” “É o que parece.”[6]
E por fim o Um é e não é. Tal é também o conceito de Brahman dos Vedas (não confundir com Brahma, deus da criação). Brahman é o Absoluto, o aspecto não manifesto da existência.
O Absoluto tornou-se o universo. A palavra “universo” não significa apenas o mundo material, mas também o mundo mental e espiritual – céus, terras, e de fato tudo o que existe. “Mente” é o nome de uma transformação, “corpo” é o nome de outra transformação, e assim por diante; todas essas transformações compõem nosso universo. O Absoluto tornou-se o universo quando percebido por intermédio do tempo, espaço e causalidade. Essa é a ideia central da Advaita Vedanta. [...] Disso, inferimos imediatamente que no Absoluto não há nem tempo, nem espaço, nem causalidade. [...] O que chamamos de movimento e causalidade não pode existir onde há somente Um.[7]
Onde há somente Um, não pode haver repouso nem movimento, ação nem inércia, momento anterior nem momento posterior, assim como não pode haver conhecimento nem conhecido, daí sua natureza ser por definição incognoscível. O conhecimento pressupõe uma dualidade: sujeito e objeto. Lá onde não há dois, não há saber.
Uma vez que Deus é tudo o que nós não sabemos, é naturalíssimo que todos os seus atributos sejam negativos, donde ele ser não temporal, não espacial, não material, não causal, não mortal e não tudo o que é conhecido. Os atributos da simplicidade e da perfeição, que parecem positivos, são na verdade nomes diferentes para não formado por partes e não modificável (perfectus, do latim, “feito até o fim”, “acabado”). O atributo da bondade é uma consequência da unidade, que é a não separação, sentindo a criatura maior gozo quanto mais unificado estiver com Deus. Mas dele não se tem absolutamente nenhum atributo verdadeiramente positivo, quanto mais a absoluta positividade que Mário lhe quer atribuir. Isso tampouco significa que ele não exista, pois a inexistência também é uma determinação: equivale ao valor zero, um número entre números, ao passo que a existência equivale ao valor um. Deus estaria antes mais bem representado pelo valor 0/0, isto é, o absolutamente indeterminado.[8]
Eu sou o ritual de sacrifício; sou o próprio sacrifício; sou as oblações ofertadas aos ancestrais; sou a erva (medicinal); sou os mantras sagrados; sou a ghee (manteiga clarificada, oferecida nas cerimônias do culto); e (sou também) o fogo (e) o ato em si da oferenda.
Sou, deste mundo, Pai, Mãe, Ancestral, Mantenedor; sou Aquele que sacrifica; sou o Objeto de todo Conhecimento; sou o AUM Cósmico; sou a tradição dos três Vedas (Rig, Yajur e Sama).
Sou a Meta Suprema, o Sustentáculo, o Senhor, a Testemunha, a Morada, o Refúgio, o Amigo Único. Sou a Origem, a Dissolução, o Alicerce, o Repositório Cósmico e a Semente Imperecível.
Envio o calor; mando ou retenho a chuva. Sou a Imortalidade e a mortalidade. Sou tanto Ser quanto o Não-ser (Sat e Asat).[9]
Não se pode dizer que Deus existe no sentido comum da palavra (existere, do latim, “surgir”, “aparecer”, “mostrar-se”), nem que não existe, uma vez que isso também seria uma determinação, mas se pode dizer que Deus não age, não sente e não julga (pois estas seriam modificações do seu ser imutável), e portanto o Deus verdadeiro, o Brahman, o Ápeiron, o Um, não pode ser um deus como o da Bíblia. Uma vez que o Absoluto não age, não sente e não julga, pois estas coisas seriam modificações do seu estado de absoluta perfeição, ele por conseguinte não pode ser o personagem ativo e engajado nas coisas humanas que é o deus bíblico, cuja figura não se assemelha à de um ser supremo, e sim à de um demiurgo (um criador de universos). Portanto, o Absoluto não pode ser o deus pessoal e engajado da Bíblia.
Se Deus é Indeterminado, então ele se encontra além de todo discurso racional, tanto para ser quanto para não ser, como o havia concluído Kant, que no entanto se manteve cristão. Isso porque a inalcançabilidade de Deus pela razão só mostra que esse não é caminho certo de alcançá-lo. Apenas uma experiência mística pode nos conduzir ao divino. Segundo Mário, “místico tem origem no verbo mýein, estar fechado, daí myô, eu oculto, mystos, o que penetra no oculto, mystagogos, o que conduz ao oculto”.[10] Porém até nisso o cristianismo é uma má religião, pois sustenta que o aceitar Jesus é por si suficiente para engendrar a salvação – salvação de um inferno criado pelo mesmo demiurgo. Assim passam os cristãos a vida inteira esperando o retorno de Cristo sem atinar nem um segundo para o próprio aprimoramento espiritual, pois já se consideram salvos. Mesmo aqueles que se aprimoram, buscando seguir a “vontade de Deus”, partem da incorreta premissa de que o único filho de Deus é Jesus (eles seriam filhos do quê, então?) e portanto jamais alcançarão um estado divino. E é tanto assim que os conceitos de iluminação dos hindus e nirvana dos budistas são absolutamente estranhos aos adeptos do cristianismo, que se consideram antes incorrigíveis e amaldiçoados pecadores. A ideia de tornar-se Um com Deus jamais passa pela cabeça do cristão, que, sendo fundamentalmente um dualista, não logra sequer conceber semelhante ideia, nem a conceberia se alguém lha explicasse, e ainda a rejeitaria como doutrina de demônios, o que revela o baixíssimo grau de espiritualidade dos adeptos dessa religião, cujo sistema é essencialmente materialista.
Os homens de pouca sabedoria imaginam que Eu, o Não-manifesto, sou limitado (quando apareço) em forma corpórea. Não atinam com Minha natureza superior: imutável, inefável, suprema.[11]
Mas o que mais me admira é um filósofo da envergadura de Mário não compreender ou ignorar as claras demonstrações de Immanuel Kant e apegar-se a provas velhas e puídas, e não compreender ainda a transcendência absoluta de Deus, querendo reduzi-lo a objeto de raciocínios formais. Acho triste que um intelectual de tão elevada estirpe e inteligência prostitua o próprio entendimento para proteger a crença em uma fantasia reconfortante. É triste que tenha sentido a necessidade de aderir a uma doutrina de massas, em vez de buscar a verdade isento de sentimental partidarismo. Essa entrega de um homem de ciência a uma doutrina idiota me surpreende mais do que a própria natureza inapreensível de Deus.
Para a nossa infinita perplexidade, não só a natureza de Deus é inapreensível, como a da própria realidade da qual ele é dito criador: pois toda lei e ordem de que é formado o cosmo não serve para explicar de onde veio esta mesma lei e ordem.
Da infinita cadeia de causas e efeitos que governa todas as modificações, mas que jamais se estende para além delas, permanecem, justamente por causa disso, dois seres intocados, a saber: de um lado, como há pouco mostrado, a matéria; e, de outro lado, as forças da natureza originárias; aquela, porque é o suporte de todas as modificações ou aquilo em que elas ocorrem; estas, porque são aquilo em virtude de que, em geral, são possíveis as modificações ou os efeitos [...].[12]
E mais à frente:
[...] toda força da natureza genuína – portanto, efetivamente originária –, a que também pertence toda propriedade química fundamental, é essencialmente uma qualitas occulta (qualidade oculta), isto é, não suscetível a qualquer explicação física, mas apenas uma explicação metafísica, isto é, que vai além da aparência.[13]
Ser suscetível a apenas uma explicação metafísica equivale, no meu entender, a ser suscetível a explicação nenhuma, ou seja, a ser um mistério.
Percebamos com maior clareza a natureza misteriosa da existência: sabemos que o cosmo possui leis, as quais, contudo, não explicam a si mesmas. E temos ainda as dificuldades apresentadas por Immanuel Kant sob o nome de “antinomias da razão”, das quais destaco as seguintes: aquela quanto ao tempo e o espaço, aquela quanto à causalidade e aquela quanto à composição dos objetos.
O tempo não pode ter um começo, pois isso significaria que havia um nada antes do início do tempo, o que é absurdo; também não pode ter sempre existido, pois isso significaria que teria transcorrido um tempo infinito até cada ponto do tempo, resultando em que o ponto presente nunca teria chegado. “Uma eternidade terá transcorrido até cada ponto do tempo.”[14] Quanto ao espaço, ele não pode ser limitado, pois isso significaria que o espaço seria limitado por um nada, mas, se é nada, não pode servir como um limite. Também não pode o espaço ser infinito, pois isso implicaria a existência simultânea de todas as coisas no espaço, mas, sendo simultânea, ou seja, ao mesmo tempo, e sendo infinito, a infinitude do espaço implicaria a infinitude do tempo, o que é impossível. Logo, nem o espaço nem o tempo são finitos nem infinitos.
Quanto à causalidade, se esse princípio for aplicado ao infinito, tudo sempre terá um causa anterior e nunca chegaremos a um ponto de partida. Se, porém, assumimos que há um ponto de partida, uma “causa primeira”, deveremos assumir que algo veio a ser do nada, sem causa alguma, o que é um absurdo. A causalidade, então, nem regride ao infinito nem possui um começo.
Quanto à composição dos objetos, se assumirmos que todos os objetos são formados de partes, seremos levados a uma progressão infinita e nunca chegaremos a um elemento simples que dá fundamento às coisas. Se, contudo, assumimos que há um elemento simples, deveremos assumir também que o espaço encontra um ponto em que é indivisível, o que é absurdo, e essa coisa absolutamente simples careceria de qualquer relação externa ou consigo mesma, não constituindo um objeto empírico possível. Os objetos da realidade, portanto, não são nem divisíveis ao infinito nem possuem uma parte simples.
Tudo isso nos leva a crer que a realidade não possui uma existência real, ou seja, não consiste em uma totalidade real dada (uma vez que uma totalidade pressupõe partes e limites).
Toda tentativa de decifrar as leis de causalidade, tempo e espaço seria em vão, pois a própria tentativa já teria de ser feita admitindo-se a existência dos três. O que significa então a afirmação de que o mundo existe? “Este mundo não tem existência.” O que significa isso? Significa que o mundo não tem existência absoluta. Ele existe somente em relação à minha mente, às suas mentes, e às mentes de todos os demais. Vemos este mundo com os cinco sentidos, mas se tivéssemos outro sentido, veríamos nele algo a mais. Se tivéssemos mais um sentido, o mundo pareceria diferente. Ele não tem, por conseguinte, existência real; não tem uma existência imutável, fixa, infinita. Tampouco pode ser chamado de inexistente, uma vez que vemos que ele existe e que, como escravos, trabalhamos nele e através dele. É uma mistura de existência e não-existência.[15]
Daí somos levados a concluir, juntamente com Kant, que tempo, espaço, matéria e causalidade não são coisas em si, mas apenas formas da nossa experiência. Segundo Arthur Schopenhauer, que adere ao idealismo transcendental, o mundo é uma representação, e não uma apreensão de objetos existentes em si mesmos.
Kant quer demonstrar a idealidade transcendental do fenômeno, a partir do erro de ambas as partes, e começa dizendo: “Se o mundo é uma totalidade existente em si, então ele é ou finito ou infinito.” Isto, porém, é falso: uma totalidade existente em si não pode absolutamente ser infinita. Pelo contrário, pode-se inferir aquela idealidade a partir da infinitude das séries no mundo, do seguinte modo: se as séries de razões e consequências no mundo são absolutamente sem fim, então o mundo não pode ser um todo, independente da representação de uma totalidade dada, pois esta pressupõe sempre limites determinados, do mesmo modo que, em contrapartida, séries infinitas pressupõem regresso infinito. Por isso, a infinitude pressuposta das séries tem que ser determinada pela forma de razão e consequência e esta, através do modo de conhecimento do sujeito, portanto, o mundo, como é conhecido, só pode existir na representação do sujeito.[16]
Essa conclusão não significa, contudo, que o mundo é subjetivo, muito pelo contrário. Se o mundo fosse uma realidade existente por si e nós tivéssemos a faculdade de captá-lo, poderia sempre haver um ruído nessa captação e não saberíamos nunca o que são as coisas em si. Mas, sendo o mundo uma representação segundo a forma do entendimento, entre nós e o mundo não há absolutamente nenhuma separação, sendo-nos ele maximamente objetivo. Daí serem a matéria, a causalidade e a lógica coisas impassíveis de serem questionadas, pois, constituindo a forma do entendimento, constituem a forma do mundo. Aí reside também o fundamento de uma objetividade da moral e do belo, embora insuscetíveis de expressão formal, e da objetividade das ciências da conduta – ética, direito e economia, que redundam no libertarianismo austríaco.
No entanto a conclusão de Immanuel Kant e Arthur Schopenhauer parece nos levar a uma nova antinomia: as coisas não podem existir por si mesmas, pois isso pressuporia uma totalidade dada, o que é absurdo; mas a representação das coisas não pode vir do nada, tendo de basear-se em alguma coisa objetiva, do contrário se fundaria em nada, o que é também absurdo. Porém, a exigência de uma base é própria da faculdade de representar, e não algo absoluto. Logo, não podemos dizer que a realidade possui um fundamento, nem contudo que não o possui. Devemos dizer que seu fundamento é indeterminado: por onde chegamos novamente a Deus. A comunhão porém com Ele só aparece lá onde não entra a razão, esta mera escrava dos desejos. E aqueles que quiserem buscá-Lo através dela somente encontrarão dualidade e separação: exatamente o que é mais repugnante à natureza do Um.
Existem três estados da mente. O primeiro é o do conteúdo e da consciência. [...] O segundo estado da mente é a consciência sem conteúdo; é o que é a meditação. [...] Então o terceiro estado é chamado samadhi – sem conteúdo, sem consciência. Mas lembre-se de que essa ausência de conteúdo e de consciência não é um estado de inconsciência. É um estado de superconsciência, de consciência transcendental. A consciência então é apenas consciente de si mesma.[17]
Submeter Deus aos procedimentos da razão é matá-lo. É preciso, pois, ir além.
[1] Arthur Schopenhauer, Sobre a Quadrúplice Raiz do Princípio de Razão Suficiente, Editora Unicamp, p. 111.
[2] Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Editora Vozes, p. 387.
[3] Arthur Schopenhauer, idem, p. 109.
[4] Giovanni Reale, Filosofia: Antiguidade e Idade Média, vol. 1, Editora Paulus, p. 31.
[5] Platão, Parmênides, Edipro, pp. 50-51.
[6] Idem, p. 61.
[7] Swami Vivekananda, Jnãna-Yoga, pp. 115-116.
[8] Devo a Alexandre Porto esta exemplificação matemática.
[9] Citação do Bhagavad Gita, em A Essência do Bhagavad Gita, de Swami Kryiananda, p. 352.
[10] Mário Ferreira dos Santos, Sobre Deus.
[11] Swami Kryiananda, A Essência do Bhagavad Gita, p. 311.
[12] Arthur Schopenhauer, idem, p. 119.
[13] Idem, p. 121.
[14] Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, p. 364.
[15] Swami Vivekananda, Jnãna-Yoga, p. 65.
[16] Arthur Schopenhauer, Crítica da Filosofia Kantiana, Col. Os Pensadores, p. 202.
[17] Osho, Intuição: O Saber Além da Lógica, pp. 64-66.
Não vou negar, aquele “graças a Deus”, na apresentação do seu livro sobre a Escola Austríaca, seguido por esse texto me confundiu um pouco. Acho que lá no livro você estava sendo irônico (ou usando alguma piada interna) e eu não percebi.