O estilo é a fisionomia do espírito.
Arthur Schopenhauer
A pena é a língua da alma.
Miguel de Cervantes
Em razão de uma pergunta que fiz em um grupo de amigos – pergunta acerca da literatura de terror –, e tendo um dessa assembleia me respondido recomendando-me H. P. Lovecraft e Edgar Allan Poe, os mais excelentes nesse gênero de que tinha conhecimento, me senti no direito de dizer que detestava a literatura anglófona em geral, e nem a sua filosofia tinha em boa conta.
Irou-se esse amigo, talvez com razão, e ordenou que eu refutasse Russell, Chalmers, Dennett, instância que ignorei, porque não era o meu interesse contender com semelhantes pensadores, ou dar-me a refutá-los sem nem ao menos a devida remuneração. Mas ignorei-o sobretudo porque minha acridez se dirigia precipuamente ao estilo literário dos anglófonos, o qual considero menos belo, com exceção de alguns, e não a seus rebentos filosóficos, dos quais também, para ser sincero, não tenho em muito os que conheço. Mas não leve o leitor esta opinião tão a sério, porque se baseia apenas em uma visão geral e estreita dessa riquíssima literatura.
Vem esse parecer se formando a partir da leitura que tenho feito dos clássicos, medievos e outros nem tão antigos e da gradual percepção de que, dentre eles, os que parecem ter o estilo menos clássico são os americanos e ingleses, cuja maneira de escrever, nesse aspecto, não se compara à dos portugueses, franceses, italianos e espanhóis das mesmas épocas.
Mui ilustre Senhor, generoso e mui valoroso príncipe: Escrever minha pouquidade a vossa grandeza, minha inocência a vossa prudência, se parecer aos que o ouvirem coisa soberba, e aos que o virem coisa descomedida, lancem a culpa a vossa Senhoria, que primeiro me escreveu, e não a mim, que com vergonha lhe respondo.
Trata-se esta passagem do começo de uma carta de padre António de Guevara, do século XVI. Note a simplicidade e singeleza de seu estilo. Sem usar nenhuma palavra que requeira dicionário (assumindo que a tradução seja bem aproximada), despeja sua erudição na sintaxe, e sua nobreza no sentido.
Impressionei-me muito quando tive em mãos e li o volume do qual consta essa epístola, chamado “Moralistas Espanhóis”, da Clássicos Jackson, e onde constam outros autores de saborosíssimo estilo, porque eu nem sequer sabia que era possível escrever desse modo. E comparando a pena desses senhores com a daqueles outros, concluo quem escreve melhor. Mas isso pode se dever ao fato de os ingleses e, por consequência, os americanos serem de temperamento pragmático, e preferirem então um estilo mais direto e menos floreado.
Posso declarar sobre este assunto: que devemos nos precaver mais contra o exagero no requinte, do que do na simplicidade, porque o primeiro excesso é simultaneamente menos ‘belo’ e mais ‘perigoso’ do que o último.[1]
Outro problema do excesso de pompa é anuviar as ideias, que deveriam ser o objetivo principal do texto, se bem que semelhante desmedida às vezes vem a calhar quando o dono do discurso é um cabeça oca ou um charlatão. “As suas críticas não têm ideias – mas têm palavras quantas bastem para um dicionário de sinônimos.”[2] Contudo ainda penso que o gosto pela clareza não escusa a ausência de elegância. Exemplo notável é Arthur Schopenhauer, cujos textos são nobres sem deixar de ser claros e até didáticos.
Quem escreve sem esmero confessa, antes de mais nada, que nem ele mesmo atribui grande valor a seus pensamentos. Pois apenas da convicção sobre a verdade e da importância de nossos pensamentos nasce o entusiasmo que é exigido para estarmos sempre atentos, com perseverança infatigável, à sua expressão mais clara, bela e vigorosa – do mesmo modo como apenas para coisas sagradas ou obras de arte inestimáveis, usam-se recipientes de prata ou de ouro.[3]
E não me digam que tal diferença entre os autores se deve a que suas línguas tenham origens diferentes: a elegância de uma pena bem instruída atravessa qualquer tradução. Acontece que ninguém pode escrever tal como não é: e a forma e estilo literário de um autor devem necessariamente seguir os contornos e feitios de sua alma. De sorte que essa falta de esmero eu a atribuo antes a uma pequenez de espírito do que a um desleixo de autor. Admito que quem estimar suas ideias vai querer escrevê-las da melhor forma possível, mas daí para adorná-las de um estilo, além de claro, ainda “belo e vigoroso”é exigir demais. Talvez não no século XIX, mas hoje já seria exigir demais que se saiba escrever. Mas o que estou dizendo? Não atinem essas regras ao vulgo, e sim aos letrados.
Quando li Crime e Castigo, duas vezes chorei, acontecimento raro e deleitoso, mas antes mesmo que isso tivesse acontecido eu já o havia colocado entre os portentos literários, no que segui a voz geral. Contudo, tenho seguro o juízo de que a obra inteira de Dostoiévski, nem a inteira obra dos russos, não valem um só solilóquio de Sancho Pança dizendo simplezas e estultices enquanto cavalga um burro. Isso porque, a meu sentir, nada excede em valor a forma e o estilo, que encontro muito melhores em Cervantes que em Dostoiévski. Um parágrafo belamente construído, posto que sem vulto o pensamento, vale mais que um pensamento magnífico em andrajos.
Eu costumava pensar que atribuía demasiado valor à forma, mais do que seria razoável fazê-lo, indo a tal ponto que me negava ler quase toda literatura do século XX em diante, por julgar faltar-lhe o apuro que é, a meu ver, justamente aquilo que separa o culto do vulgar. Mas já não penso assim hoje. Na verdade, penso sim, com a diferença que não acho mais que este pensamento é desarrazoado. Acredito que esse apreço pela forma se justifica, e se não deve ir tão longe como em mim vai, certamente nem tão curto deve ser também.
Eu dou, é verdade, tanta primazia à forma, que estou quase para dizer que a arte consiste tão somente nisso, no entanto é também verdade que jamais descurei do conteúdo ou menosprezei sua importância.
Sucede que o conteúdo é o mínimo, é a base imutável sobre a qual a forma se avulta e brilha. Dada uma certa ideia, ela em si mesma não muda, mas a forma da sua expressão varia conforme o engenho do autor. Que um texto comunique um bom pensamento, isto já eu o tomo por certo; mas que encante e entretenha, é aí que reside a jurisdição do estilo. Porque dizer algo é fácil, difícil é dizê-lo belamente. Concedo que às vezes a precisão rouba a beleza do discurso. Quão mais técnico, menos poético. Porém rejeito que é sempre assim e que não se possam escrever belos discursos filosóficos e científicos. “A excelência da linguagem consiste em ser clara sem ser chã.”[4] Mas isso não vai depender nem tanto da natureza da matéria quanto do apuro do autor.
O triste é que o idioma decaiu tanto na boca e na pena de quem o usa, que, se não fosse por inépcia do escritor, por clareza mesmo é que se lhe reduziria a altivez, para ficar como se dirigido a crianças, vez que o leitor médio no Brasil é um semianalfabeto, como também o diplomado. Tanto já me empenhei em ser claro em certos escritos, que por pouco não me senti escrevendo para retardados, e ainda assim costumam esses escritos ao final parecer suficientemente obscuros para engendrar grande quantidade de incompreensões e interpretações equivocadas. Desse modo, mesmo que o autor soubesse encarecer o discurso, ao público o daria pobre, como é capaz de absorver. O vocábulo simples e a sintaxe fácil, sem o tempero de um dizer culto, são as ordenanças da literatura de um povo iletrado. “A simplicidade é interpretada como estupidez, quando não é acompanhada por uma grande elegância e propriedade.”[5]
***
O fim abrupto deste texto se deve a que, na época em que o comecei a escrever, cheguei à conclusão de que era o tema demasiado vultoso para a minha pouquidade e, como que constrangido pela presença de um gigante invencível, abandonei-o. Tendo, contudo, a ele retornado, depois de já esquecido, vi-lhe certa candura, e resolvi publicá-lo, crendo que o leitor será para com ele indulgente, como Platão nos ensinou que fôssemos quando um companheiro arrostasse tema muito maior que a sua capacidade. Então, recebei-o com indulgência, mas não vos acanheis também de o contestar e de o refutar, caso lhe encontreis algum infeliz raciocínio.
[1] David Hume, “Da simplicidade e do requinte na maneira de escrever”.
[2] Antero de Quental, “Bom Senso e Bom Gosto”.
[3] Arthur Schopenhauer, Sobre o ofício do escritor.
[4] Aristóteles, Poética.
[5] David Hume, idem.
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