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Conto do trilho do trem

Foto do escritor: João TheodoroJoão Theodoro

Atualizado: 10 de mar.


Vincent van Gogh, "Caveira com Cigarro Aceso", 1886.
Vincent van Gogh, "Caveira com Cigarro Aceso", 1886.

 Luís Abelardo contava a Paulo Couto o que lhe acontecera na noite anterior:


— Ligou-me ontem um amigo, eu já estava quase indo dormir, e disse-me que estava num ermo diante do trilho do trem, e disse que ia atirar-se. Estava desiludido da vida, e ligou-me para ver se o iludia de volta. Bem sabes, Paulo, que sou exímio vendedor, e o que é vender senão mover?


Paulo Couto tomava um café preto e o ouvia em silêncio. Não alarmou o velho a notícia de que o amigo do amigo ia atirar-se ao trem. A idade removera-lhe as afetações. Estavam em um evento de empresários, tomando café da manhã, e logo iam a rodadas de negócios.


— Tu vendes curso de idioma — comentou Paulo —, e já nisto exceles, que é produto de grande utilidade. Quão mais não excelerias, Luís, vendendo a vida, que é a fonte de toda utilidade?


Paulo Couto, conquanto não fosse bajulador, era um homem positivo e estava sempre a estimular seus parceiros. Luís Abelardo se inchou da lisonja e respondeu:


— Que isso, ainda tenho muito a aprender. Mas não adivinhas, Paulo, com que promessa lhe vendi a vida. Antônio é literato, amante das letras, e é princípio de vendas que se deve oferecer aquilo que o cliente quer, moldar o discurso a seus interesses. Sabes que recentemente fui laureado com uma cadeira na Academia de Letras da Maçonaria?


— Sim, evidentemente — disse Paulo.


— Pois o fiz voltar para casa prometendo-lhe um conto.


Luís Abelardo nunca escrevera um artigo sequer, mas a vaidade por ter sido nomeado membro da Academia de Letras da Maçonaria, mais a escassa cultura literária e a pouca autocrítica, o faziam crer-se capaz de escrever um conto que valesse uma vida. Fora empossado em semelhante grupo por interesses outros que não os da arte, que não tinha quem lhos defendesse.


— Não querendo desfazer no teu talento, Luís, nem na alteza do teu intento, mas uma história curta não é de tanta dissuasão. Tu já ouviste falar no triângulo da vítima?


— Não, não — disse Luís, contrafeito. Vexava-o sua ignorância, mas também tinha pavor a todo saber que não fosse prático.


— No vértice se encontra a vítima, e num dos dois lados, o salvador. A vítima está sempre a procurar alguém que a salve da situação em que se encontra e é o salvador quem cumpre esse papel.


— Muito interessante — disse Luís. — E do outro lado?


Mas antes que Paulo pudesse responder, todos os empresários foram chamados ao auditório, onde começariam as rodadas de negócios. Paulo prometeu concluir o raciocínio assim que tornassem a se ver. Luís Abelardo, a quem pouco interessavam teorias psicológicas como quaisquer outras teorias, logo voltou sua atenção a quem lhe sentaria junto à mesa, e se esqueceu de Paulo e do seu triângulo.


Antônio Pinheiro, o literato, passara a noite em claro, com os olhos sobre Nos Cumes do Desespero, de Emil Cioran, e fumando. Tinha quarenta anos e morava com os pais. Nunca escreveu obra que algum valor tivesse, nem nunca quis trabalhar, porque se considerava artista. Ainda assim, vexava-se sobremodo de morar com os pais e de não ter feito nada da vida. Quis matar-se outras vezes, mas se acovardou. Posto namorasse a morte, queria viver; posto quisesse viver, não via motivo. Nunca amou sem pagar, não tinha amigos e odiava o país, as pessoas e o mundo. Amigara somente Luís, que, tendo investido certa feita numa editora, a Abelardo Press, que faliu, e tendo por caridade na época aceito imprimir-lhe obra de poemas a preço de custo, conquistou-lhe por isso a estima, e Rivaldo Torres, que, como Antônio, era sobejo em ódios.


Rivaldo Torres era o que se pode chamar zumbi ideológico, cujo comportamento se caracteriza por julgar todas as coisas segundo o olhar de uma religião ou ideologia. Todo o seu contato com a realidade não era senão intermediado por ideias de outras cabeças, e a tudo precisava subsumir as normas do seu ideário. Removendo-se-lhe o ideário, não sobrava um homem. Como todo zumbi ideológico, Rivaldo odiava a todos que não se enquadrassem naqueles preceitos, e eram todos hereges e pulhas. Havia um, no entanto, que se lhes enquadrava: era Antônio Pinheiro. Este, por homenagear o amigo, escreveu-lhe estes versos:

 

Neste mundo cruel de pecadores,

Busquei, como Diógenes, um justo,

Que anarquista fosse e cristão robusto,

E só o encontrei em Rivaldo Torres.

 

Desprezador de feminis amores,

De que em mim anda o coração onusto,

Sabe dos apetites o alto custo,

Que soem os prazeres virar dores.

 

A santíssima Sé tem por vacante,

Por ser da Santa Fé maior amante,

E odeia os estatistas e o estado.

 

Eia, Torres! que é grande a nossa luta!

Vençam nossas ideias tal disputa,

Sojugue o Leviatã nosso cajado!

 

Inocente das verdadeiras razões do amigo, Antônio Pinheiro acreditava que Rivaldo Torres desprezava as mulheres por culto da castidade, quando o caso era de não lhes conseguir angariar o afeto. Enganando-se a si e ao amigo, Torres gabava-se de moralmente superior, e isto o fazia sentir-se menos miserável.


Chegando Antônio ao café onde normalmente se encontravam, queixou-se de Javier Milei e do movimento libertário, que a seu modo de ver sucumbira. Rivaldo concordou, e aproveitou para recriminar uma terceira vez o amigo por manter relações com um maçom, desafeto da Igreja.


— Se tu, Rivaldo, chegaste a tal nível de pureza que menosprezes os afetos das mulheres e a estima dos homens, lá ainda não cheguei eu, que sem isso me seria insuportável a já desditosa vida. Deixa-me então amar prostitutas e amigar maçons. Ainda sou católico, e basta dizê-lo para sê-lo.


— Nunca houve tantos cristãos nominalmente, sem haver um só realmente.


E iam os dois amigos conversando e se queixando do mundo. A vida de Antônio se resumia em madrugar em descridas leituras, escrever versos e contos que ninguém lia e trocar lamentos com Rivaldo Torres, cujo pessimismo era para Antônio um suave licor.


Tendo recebido então, semanas depois, o conto de Luís, que em verdade não demorara semanas para o escrever, mas em duas horas o tinha pronto, crendo ser isso abundância de estro e fartura de engenho, recebeu-o tão mal-acabado e com tantos defeitos, que se ofendeu profundamente, julgando que Luís se dedicara ao conto na mesma medida em que lhe estimava a vida. E, sendo Antônio mal escritor mas não tão mal leitor, escreveu este e-mail como resposta, furioso:


“Caro Luís,

Se o teu conto, como é conto, fosse indivíduo, certamente era um aborto. Nunca vi tão deformado dadaísmo, e tão selvagem pena. Teria sido grande coisa ter-me escrito um conto de dez páginas, como é esse, em algumas semanas, se tivesse ele vindo pelo menos com um enredo coerente e alguma elegância na forma. Mas se foram precisas semanas para me escrever semelhante monstro, mais valera usar um ChatGPT ou o DeepSeek chinês. Escreveste: O busto de Lavínia, era como duas bolas suadas de sorvete de baunilha, e Ricardo um camelo sedento do deserto de olhos arregalados já queria lamber eles. Neste breve período há tantos erros de português quanto é grande o mau gosto. Se é esse o valor que atribuis à minha vida, logo vejo que fiz mal em conservá-la. Antes ter morrido do que ler semelhante desastre.”


Depois que enviara o conto a Antônio Pinheiro, Luís Abelardo sentia-se duplamente envaidecido: de um lado por ter feito uma caridade, de outro por ter produzido literatura. Assim que enviou o documento, imprimiu-o para o ler na Academia, imaginando-se a receber os aplausos dos irmãos, e a ter a sua pena louvada, e admirada a atitude de a pôr por obra em tão nobre causa. Enlevado nessas fantasias foi arrumar-se para o trabalho.


Quando mais tarde, no entanto, sentou-se ao computador e viu o e-mail de Antônio, ficou tão irado que era como se uma turba de larvas demoníacas estivesse fazendo um pregão em suas entranhas, como ele mesmo teria dito, adicionando talvez algumas vírgulas. E ficou tão ofendido em sua vaidade de poeta, que o esmero que não pôs em escrever o conto empregou-o inteiro em responder aquele e-mail, e escreveu assim:


“Caro Antônio Pinheiro,

A tua empáfia ululante despedaça-me. Sinto-me profundamente magoado de que tenhas a minha arte em tão baixa conta, e que julgues meu português como fosses dono do idioma. Verdade é que não tive tempo para corrigir o manuscrito, querendo dar-te meu presente em tempo breve. A arte é livre, meu caro, e tu a julgas conforme um conceito ultrapassado de belo, que já em 22 foi destituído, caso não saibas. Confrontos estéticos à parte, é triste receber como paga tamanha ingratidão. Por essas e outras é que és um fracassado perdido no mundo, e por onde passas o cheiro de merda é tão grande que não há quem não deseje intensamente uma máscara de oxigênio caída de um avião de socorro à AIDS. Nunca mais me peças favores, nem nunca mais me ligues. E, se estiveres a caminho do trilho do trem, atira-te antes de ligar-me.”


E tendo escrito semelhante desafronta, enviou-a a Pinheiro, não sem antes corrigir-lhe no Chat os vícios, pois não gostava de chineses. Antônio, de fragílima constituição moral, sentiu-se tão ofendido com a resposta que, sem pensar muito, mas no fundo sentindo-se meio heroico, foi até o trilho, e atirou-se. O trem estraçalhou seu corpo como um tomate podre num liquidificador com a tampa aberta. Rivaldo condenou o amigo, dizendo que o suicídio era pecado grave, e lamentou sua escolha de violar o catecismo e rumar para o inferno. Luís não soube que fim levou o literato, pois nunca mais o procurou; mas, como encontrasse novamente Paulo Couto e de repente lhe ocorresse perguntar acerca do misterioso triângulo, disse-lhe o velho:


— Dizia eu, Luís, que em cima há a vítima. Num lado, o salvador; e no outro, faltou dizê-lo, o perseguidor. Vê bem, a vítima se faz de coitada para atrair um salvador e acusa o perseguidor da sua desgraça. É um drama, para o qual a vítima seduz os seus personagens. Costuma o salvador irar-se e migrar para o outro lado. Já aí te encontras?

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