Uma das piores pretensões que o homem cria para si é a de ser bom. Ele quer se sentir bom e ser considerado como tal. Ele se indigna quando é visto de outra maneira e por isso vive se justificando. O anseio por ser bom é uma das coisas que mais limita os homens.
Por certo, não lhe direi tampouco para ser mau, que isso faria menos sentido ainda. Na conclusão do texto darei o que acredito ser o melhor caminho, mas já adianto que este não reside no bem nem no mal.
O desejo do homem de parecer bom talvez tenha nascido de sua necessidade de ser aprovado, e o desejo de sentir-se bom pode ser uma demanda de sua vaidade, mas o desejo de sê-lo efetivamente reside em poucos.
A primeira dificuldade aqui é saber o que com efeito vem a ser bondade, ou agir bondosamente, coisa que espíritos diferentes responderiam diferentemente. O definidor desse critério costuma ser o próprio povo, a opinião pública, porque ninguém seria bom se isso significasse exclusão social, e o louvor dos concidadãos parece ser o último critério do bem agir. Desse modo, poder-se-ia reduzir a bondade à concordância com a opinião pública. Mas a grande maioria do povo é estúpida e bestial, de modo que ser concordante com sua opinião parece ser um bom critério de tolice. Por conseguinte, ser bom é ser tolo.
Seria difícil contestar esse raciocínio quando se veem homens como o Fiuk obstinando-se por parecer bom ainda que isso o reduza a um amesquinhamento desprezível de si mesmo. Ou quando se veem indivíduos atirando fora o bom senso para se filiar ao discurso politicamente correto – o que é, na visão deste autor, o mesmo que se render ao mal – inobstante a falta de sentido e coerência interna desse discurso. Ou ainda quando um homem se torna demasiado indulgente com sua parceira, aceitando que ela se exiba e flerte com outros homens, para não parecer machista e até posar de desapegado e evoluído.
Já o desejo de se sentir bom é outra categoria, ainda mais abrangente. Existe uma sanha dentro do ser humano que o compele a buscar estar sempre certo e justificado, a ser sempre bom. Um homem nunca simplesmente quer algo, ele o quer por um motivo que, do ponto de vista dele, caminha em direção ao bem. Até mesmo os vilões das histórias sempre têm uma justificativa para suas ações, a qual os faz se sentirem moralmente superiores ou justificados, a fazer a coisa certa. Em um filme, um cientista infecta e mata milhões de pessoas com um patógeno raro para descobrir a cura da doença de seu filho; ele pensa estar agindo mais que corretamente. Thanos da Marvel elimina metade dos seres vivos do universo e não só acredita estar fazendo o bem, como o maior bem possível.
Para o homem não bastaria ser bom, porque ele nem sequer sabe o que é isso. Ele quer é se sentir bom, por força de vaidade. Isso produz nele uma grande hipocrisia e alguns comportamentos idiotas.
A necessidade de se justificar é reflexo disso. Um homem que se conhece e está seguro de si, que sabe quais são seus valores, gostos e preferências e tem propósito, esse não precisa se justificar para os outros, tentando provar que está certo. Ele simplesmente sabe que está, pois segue sua própria alma. No entanto, quando ele não se encontra numa posição sólida consigo mesmo, teme o julgamento alheio e se submete à humilhação de ficar se explicando para os outros. Aqui, ser visto como mau e sentir-se mau são a mesma coisa. É que quem procede assim permite que a visão que o outro tem dele defina quem ele é – o que só pode acontecer com quem não tem uma visão clara de si.
A necessidade de se sentir bom pode fazer que o sujeito evite qualquer atrito com os outros, de maneira que ele passa assim a aceitar situações que de outro modo não aceitaria. A meu ver, aquilo que esse sujeito diz para si mesmo – que ele evita atritos por ser uma pessoa boa e tolerante – é na verdade uma mentira que usa para encobrir o verdadeiro motivo pelo qual não se impõe: a covardia. O medo de sofrer algo é que explica, na maioria das vezes, esse comportamento passivo-feminino. Só quem pode ser mau pode ser bom. Aquele que não pode ser mau não é bom, é medroso.
O comportamento passivo-agressivo, de quando a pessoa lança ataques pessoais velados sob um discurso aparentemente amistoso e ponderado, também é fruto disso; mais precisamente, do medo de se posicionar aberta e francamente contra alguma coisa e assumir o papel de vilão.
Atualmente, quando as pessoas condenam o racismo, a homofobia e coisas assim, elas não estão simplesmente sendo mais sensatas e evoluídas. Elas não o fazem por terem atingido graus superiores de consciência e estarem agora emanando mais amor. Longe disso. Elas passaram a fazer isso porque entrou na moda e morrem de medo de serem consideradas pessoas más. Elas querem estar conforme o discurso dominante para não serem excluídas. Isso não tem nada a ver com bondade, e sim com ser aceito e aplaudido.
Ninguém de fato reflete sobre essas questões. “É claro que a multidão nada percebe, limitando-se a repetir os pronunciamentos de seus líderes”.[1] Tudo é uma questão de sair bem na foto. Eles amam seus cachorros e gatinhos, mas matam bilhões de galinhas, bois e porcos para encher a mesa.
Esse é o vírus da falsa bondade.
Então, agora, as pessoas têm medo de fugirem a um discurso totalmente complacente, em que ninguém é ofendido e todos podem ouvir sem serem de nenhum modo incomodados. Subtraem-se desse modo os palavrões, as expressões fortes, as verdades rudes e tudo que poderia lançar um pouco de sal e pimenta no discurso. As alocuções tornam-se macias e felpudas, o que explica a fácil ascensão e popularidade de figuras como o Super Xandão e o Olavo de Carvalho, que nadam contra essa corrente do “bem”.
Talvez hoje o que mais se oponha ao bem seja a honestidade: nesse caso, eu prefiro ser mau.
Querem proibir o preconceito e a discriminação, e essa tentativa mesmo demonstra aquilo que Platão diz mais acima: que as pessoas não refletem sobre aquilo que professam. O preconceito, que é uma hipótese sobre o caráter ou personalidade de alguém ou de algum grupo, pode nos levar ao engano justamente por ser uma hipótese, bem como limitar nosso crescimento como indivíduos por nos impedir de nos relacionar com pessoas potencialmente maravilhosas. O seu preconceito, se for muito forte, pode impedi-lo de fechar uma parceria com alguém que poderia alavancar seu negócio; pode impedi-lo de fazer bons amigos e conhecer pessoas interessantes que enriqueceriam seu mundo; e até tornar a sua vida bastante chata e limitada.
Contudo, como explica o filósofo e economista alemão Hans-Hermann Hoppe, o julgamento acerca do comportamento futuro das pessoas é uma implicação necessária do fato de que vivemos em um mundo de incerteza. Toda ação humana, uma vez que parte de uma condição de ignorância sobre o futuro, mas que ao mesmo tempo se direciona a ele, precisa fazer previsões, e isso inclui previsões hipotéticas sobre os comportamentos de nossos companheiros. O preconceito, então, não é só algo positivo, como é também necessário. E, por ser uma hipótese, a experiência poderá refutá-lo, pelo que ganhará uma nova formulação. Mas o homem nunca deixará de ter uma ideia antecipatória acerca de seus semelhantes.
Quanto à discriminação, ela pode causar muito sofrimento quando faz pessoas de bem se sentirem excluídas, rejeitadas e desprezadas, às vezes por motivos fúteis. No entanto, assim como o preconceito, a discriminação também é uma implicação necessária de toda conduta humana. Discriminar significa separar, diferençar, discernir. Toda conduta pressupõe uma escolha, uma preferência, em que se faz uma coisa em vez de todas as outras que se poderia fazer. É impossível, portanto, agir sem discriminar. Nós discriminamos os locais que frequentamos, as pessoas com quem saímos, as comidas que colocamos no prato e tudo mais. Toda escolha já é uma discriminação, que se baseia em valores e preferências pessoais. Você por acaso sai à noite com qualquer um? Deixa qualquer pessoa entrar em sua casa? Contrataria qualquer empregado indiscriminadamente? Você se casaria com qualquer pessoa do mundo? Então, talvez discriminar não seja tão mau assim.
Além disso, o poder de discriminar é inerente ao exercício da propriedade privada. Ter propriedade privada significa poder discriminar e excluir. Isso significa proteger o que é nosso daqueles que não sabem conviver em harmonia, daqueles cujo comportamento acarreta discórdia e degeneração. Discriminar significa proteger o belo contra o feio, o bom contra o mau, o ordeiro contra o caótico. Proibir o ato discriminatório na propriedade privada é o mesmo que aboli-la, e com isso abrir caminho para o fim de toda liberdade.
Um homem só será completo quando superar essa dicotomia de bem e mal. Bem e mal não existem objetivamente, são apenas modos simplificados de se nomear aquilo que se quer e aquilo que se evita. Um homem incapaz de ser mau, no sentido de causar sofrimento ou desagrado aos outros, nunca poderá ser livre, porque o medo de desagradar os outros impedirá suas ações. A necessidade de estar sempre bem com todo mundo, e assim viver como que dentro de um quartinho acolchoado, o tornará tão dócil que isso consumirá toda a sua capacidade executiva e o fará suportar, ele próprio, mil desgostos.
Desejar ser bom é mera vaidade. Evoluir significa contemplar, aceitar e integrar tudo aquilo de bom e de ruim que há dentro de nós: as luzes e as sombras, os anjos e os demônios. Ser bom não é o caminho: o caminho é ser completo. Aquele que é íntegro, completo e se conheceu, às vezes agirá talvez com severidade, às vezes com sumo amor, e ninguém saberá classificá-lo. Ele não aspira a ser bom, nem louva a maldade, mas busca seguir fielmente a sua própria intuição. Quando o critério das nossas ações é a consciência, estamos livres daquela dicotomia. Não é agir para ser bom, nem agir para ser mau, mas agir para Ser.
Se me perguntassem o que considero ser a boa conduta, diria ser aquela alinhada com as virtudes. Ter coragem, temperança, humildade, persistência. O próprio desenvolvimento pessoal conduz a isso e ainda acrescenta a paz, a riqueza e a realização. Assim, eu havia substituído o desejo de ser bom pelo desejo de ser virtuoso. Mas, no fim, alguns vícios dos quais eu queria me livrar me lançaram um olhar de órfão tão enternecedor que percebi que seria menos alegre sem eles. E por isso não recusei acolhê-los sob minha diversa imperfeição.
[1] Platão, em Protágoras.
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