Hoje um grande amigo meu, que é filósofo, indagou em nosso grupo se a lógica é passível de ser reduzida a algo mais básico que ela. Fui o primeiro a responder e disse que não, que ela é irredutível, porque se baseia na ideia mais fundamental de todas, que é aquela regra segundo a qual nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. E todos no grupo pareceram concordar que a lógica era a primeiríssima de todas as coisas na esfera do pensamento.
Eu a defini como “a ciência da forma do pensamento”, que me pareceu uma definição muitíssimo precisa, mas meu amigo falou que não enxerga a lógica apenas como isso. Segundo ele, ela seria a regra das regras, e toda lei da natureza seria um seu desdobramento. Não o questionei sobre essa visão, mas ela me pareceu um tanto kantiana, para quem o entendimento – onde mora a razão e portanto a lógica – não é uma faculdade que se coaduna com as leis da natureza, apreendendo-as, mas é sua própria legisladora. Meu amigo parece pensar que a lógica é a estrutura da realidade, no que eu concordaria com ele se ele confirmasse pensar desse modo.
Não conheço outro homem que ame mais a lógica e a ela seja mais fiel do que ele, e no entanto a questionou e colocou sob dúvida, cogitando da ideia de que algo poderia, quem sabe, ser mais fundamental. Esse ceticismo, longe de ser mostra de uma confusão no pensamento, como sói acontecer à pós-modernidade, em que os homens são tão confusos que não contemplam mais base nenhuma do pensar e creem que tudo é gosto e interpretação; longe de ser semelhante coisa, esse ceticismo é expressão de um apego profundo e sistemático à verdade. Porque um sujeito que ama a verdade está disposto a questionar até as bases mais dogmáticas do pensamento e tudo quanto pareça estar apoditicamente definido.
Porém, questionar a lógica somente serve para confirmá-la uma vez mais, pois qualquer que seja a conclusão lá estará ela como a estrutura de todas as estruturas. E se eu disser que algo é, esse algo não pode ao mesmo tempo não ser, sob pena de nada mais fazer sentido e lançarmos fora o bebê junto com a água do banho. De sorte que a lógica se faz, na terminologia de Wittgenstein, a instituição que possibilita todas as outras instituições.
E creio de tal modo nisso, que me parece falso o pensamento segundo o qual o entendimento capta a estrutura da realidade através de um processo intelectivo. Parece-me antes mais certo dizer que o entendimento e a estrutura da mente é que impõem a estrutura da realidade, pois eu só posso ver a realidade com os equipamentos que me são inatos e assim interpretá-la conforme um ponto de vista mental, e tudo quanto estiver fora disso me é incognoscível.
Assim podemos afirmar que há dispositivos, se não inatos, pelo menos a priori do pensamento, que não são aprendidos na experiência, mas condições da própria experiência, como a noção de causa e efeito, espaço e tempo, os quais não conseguimos abstrair sem cair no nada. E aí se encontram a lógica e outros institutos que mais tarde foi descoberto pertencerem a essa mesma classe, dentre os quais se ajuntam os conceitos da praxeologia.
Porque, assim como eu não posso conhecer a causalidade a partir da experiência, mas antes esta está contida naquela, assim também não posso saber o que seja uma ação sem já ter seus conceitos dentro de mim a priori. Porque tudo o que testemunhamos com os nossos sentidos são apenas movimentos corporais, sendo o entendimento que completa esse quadro com os elementos espirituais do valor, do propósito, do lucro, do custo, do prejuízo e os outros corolários do conceito de ação. De tal modo que podemos dizer o que uma ação é a priori, e dela extrair leis tão certas quanto as leis da aritmética.
Daí que se deduz todo o corpo da ciência econômica e mais o da ciência jurídica, e esta já repassada de seu conteúdo normativo. Trata-se, em verdade, de ciências irmãs, e tão interdependentes que não é possível pensar uma sem pressupor a outra: pois toda ação, além de conter os conceitos que informam a Economia, contém igualmente o conceito de decisão, que deriva do de dever, que por sua vez consiste no núcleo da ética e da ciência jurídica e cujo conteúdo objetivo e vinculante extrai-se por meio de uma reflexão sobre as condições pragmático-transcendentais do discurso. E assim se pode deduzir quase toda a filosofia política a partir desse conceitozinho.
A lógica, naturalmente, nasce nua, despida de qualquer conteúdo, devendo nós preenchê-la com os conceitos que obtemos da experiência ou que nos são dados a priori no entendimento. E, embora nua, é mais forte que todos nós, e nos obriga a seguir seus ditames, sem o que caímos no abismo da pobreza e da ignorância. Irmã do amor e da justiça, por ela é que “a virtude prevalece” e “a flor do heroísmo medra e viça”.[1] E aqueles que a desprezam e ignoram estão fadados a destruir a si mesmos, como um porco que se atira do alto de um penhasco crendo ser um pássaro.
[1] Hino à Razão, poema de Antero de Quental.
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